CRÔNICA
Pequenos abusos
O encontro entre o policial e o
engraxate na banca de revistas
Walcyr Carrasco
Aconteceu em um sábado, à 1 da manhã. Eu havia saído com alguns amigos. Vim de carona até a frente do meu prédio, onde há uma banca de revistas. Estava aberta. Aproveitei para entrar. É uma banca grande, com caixa e máquina que preenche cheque. Espantei-me ao ver, espalhados sobre o balcão, vários montinhos de dinheiro, alguns de moedas. Troco pequeno: notas de 1, de 2 reais. O caixa contava o total. Ao lado, um engraxate. Moleque. Na idade em que já deveria estar em casa, e não solto pelas ruas do centro da cidade. Trouxera a féria do dia, em dinheiro picadinho, para trocar por notas de maior valor.
Nesse instante, um policial entrou na banca. Alto, fardado. Olhou para o garoto. Estendeu o pé, mostrando o sapato. O garoto quis explicar.
–.Estou sem material para engraxar.
–.Lustre – ordenou o policial.
Confesso que fiquei chocado. Ninguém é obrigado a trabalhar à 1 hora da manhã. Ainda mais de graça. Obviamente, o policial nem sequer cogitava pagar. Também, confesso, fiquei sem ação. O garoto, já acostumado à dura vida na rua, ajoelhou-se. Tirou um pano da caixa de engraxate. Lustrou ambos os sapatos. Quando ele abriu a caixa, subiu um cheiro no ar.
–.É cola? – perguntou o policial.
Percebi uma acusação a caminho. Lembrei-me dos meus tempos de criança, quando havia um sapateiro perto de casa. Às vezes a sola do meu sapato soltava, e ele colava novamente. Não sou ingênuo a ponto de achar que o garoto fosse completamente inocente. Mas, segundo acredito, até qualquer prova em contrário, ninguém é culpado. Talvez, carregar cola fosse normal para um engraxate. Comentei:
–.A cola pode servir para consertar uma sola solta, por exemplo.
O policial me encarou e não respondeu. Olhou o garoto, ameaçador. Decidi permanecer na banca. A vítima, ali, era o garoto. Por que motivo um policial acha que tem o direito de usufruir trabalho gratuito? Ainda mais de madrugada? Já vi isso acontecer várias vezes. É comum um policial entrar em um bar e consumir sem botar a mão no bolso. Não acho correto. E o mais interessante é que estou do lado dos policiais. São mais do que necessários, com a violência de hoje
–.Imagine o que é sair para trabalhar todo dia sem saber se vou voltar vivo para casa.
Além de ganharem pouco, muitos escondem a profissão para não sofrer hostilidades na vizinhança. Justamente por isso sua atitude deveria ser completamente outra. É preciso que o policial seja visto como um amigo. Por todos nós. E fundamentalmente pelos mais pobres, mais carentes, que só têm a eles para recorrer. Pequenos abusos, como espichar o pé para lustrar o sapato de madrugada, levam à desconfiança. Ao medo. À perda de confiança necessária para fazer denúncias. A polícia precisa do apoio da população. Como conquistá-lo com atitudes nesse estilo?
Certamente, o pequeno engraxate estava apavorado. A presença da cola na caixa de trabalho poderia merecer uma conversa. Um encaminhamento. É possível que eu estivesse errado em sair tão prontamente em sua defesa. Mas o que havia lá era apenas ameaça. Terror.
O rapaz da banca terminou de contar o dinheiro e deu duas notas de 10 reais ao garoto. Seu faturamento no dia, provavelmente. Ele partiu. O policial saiu
Publicado na Veja São Paulo – 14/8/2002
Walcyr Carrasco é autor de novelas da Globo e cronista da revista Veja São Paulo
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