Os receios dos primeiros dias de serviço já não surtem efeito, a insegurança já foi vencida. O tempo fez dele experiente. Os anos permitiram-lhe envolver-se em diversas emoções. Agora, um novo reinício o aguarda. É a inatividade que está chegando. Como será ter que mudar a rotina de 30 anos e recomeçar uma nova fase?
Alguns, para não perder o vínculo com o quartel, vêm mensalmente buscar o holerite e aproveitam para rever os colegas. Outros, querem cortar totalmente o vínculo, contudo, acabam encontrando dificuldades para romper o cordão umbilical. São conhecidos relatos de policiais inativos há mais de quinze anos, que ainda sonham estar escalados em alguma operação.
O 2º Tenente Res PM Cícero de Souza Ferraz, inativo desde 1994, recebeu a ligação de um ex-colega de trabalho convidando para o Happy Hour, por volta das 17h30 de uma sexta-feira. Embora morando na região do Campo Limpo, Zona Sul da Capital, e estar chovendo, logo, com trânsito mais complicado, se desvencilhou do compromisso de cuidar da netinha e 18h30 estava num bar e restaurante da Rua Afonso Pena, no Bom Retiro. Chegou sorridente, abraçou forte o colega e falou um pouco da sua vida. Comentou que se ocupava lecionando História para o Ensino Médio, no Estado.
Algum tempo depois, sentado numa cadeira que dava vistas ao Quartel do Comando Geral, sua antiga Unidade, confidenciou emocionado: “Que saudade louca que me dá do quartel”.
Antes de ser um Oficial da Corporação, o Tenente Coronel Carlos Miranda era ator e viveu as emoções de interpretar o Vigilante Rodoviário, seriado que passou na televisão nos anos 60.
Mesmo tendo encerrado o programa há algumas décadas e a sua atividade na PM em 1989, ainda hoje, aos 75 anos de idade, completos dia 29 de julho, se apresenta garbosamente fardado de policial rodoviário em eventos diversos. “É o meu agradecimento por tudo que a Força Pública representou pra mim”, afirma Carlos Miranda.
A expectativa da passagem para a inatividade tem relação com o desejo de ficar livre das cobranças e exigências da vida de caserna. “Nos primeiros seis meses eu não queria fazer nada, depois começou bater o desespero porque comecei sentir falta de ver gente, de conversar.” Diz o 2º Sargento Reformado PM Carlos Antonio Stedtler, de 51 anos, que passou para a inatividade em dezembro de 2006.
Já de início, Carlos Antonio deixou o cavanhaque crescer. Também não queria ter compromisso com horários e obrigações.
Como sua esposa, a 1º Sargento Feminino PM Esther Ercília, da Comissão de Promoção de Praças, ainda está trabalhando, passava o dia inteiro sozinho. “Eu comecei procurar coisa em casa pra fazer, depois ficava assistindo TV ou mexendo no computador, mas chegou uma hora que não agüentava mais isso”. Por sentir-se solitário e com vontade de ser útil, passou a entregar currículo em empresas privadas e nas associações da PM, buscando uma vaga dentro dos seus conhecimentos de Bacharel em Direito, auxiliar de enfermagem, informática e também como instrutor de primeiros socorros.
Foi chamado para trabalhar numa empresa que terceiriza trabalhos para a Cruz Azul, onde exerce há cinco meses o cargo de Analista Jurídico. “Hoje minha vida voltou à normalidade”, afirma tranqüilo.
Aprendendo uma nova liçãoConforme dados da Divisão de Recursos Humanos da Diretoria de Pessoal, uma média de 200 policiais ao mês passou para a inatividade no primeiro semestre de 2008. Em contra partida, outro tanto ingressou na Corporação. É o círculo natural da vida.
Aos que entram, o curso de Soldados ou de Oficiais vai indicar-lhes o proceder. Os que estão encerrando a carreira têm o Programa de Passagem para a Inatividade (PPI), que vai “desacelerar” o policial que está perto da aposentadoria.
Após constatar que os policiais militares aposentados ficavam solitários, deprimidos e até ingressavam no alcoolismo, o Centro de Assistência Social e Jurídica (CASJ), Unidade subordinada a Diretoria de Pessoal (DP) da Polícia Militar, iniciou um projeto piloto em 2004 do PPI. De lá pra cá, 11 turmas já foram atendidas. O sucesso tem sido tão grande que foi necessário montar mais dois grupos nesse segundo semestre para atender a demanda.
O programa inclui reflexão, dinâmica de grupo e principalmente a descaracterização do militar, para despertá-lo para a nova identidade.
Ao chegar, o policial passa por uma avaliação do seu quadro de saúde onde é verificado o seu nível de stress, ansiedade e até a relação com o álcool.
Também são conduzidos a se relacionarem pelo primeiro nome, esquecendo o nome de guerra, pois é a sua identidade civil. “Uma vez liguei na casa de um policial e perguntei por ele pelo seu nome civil e fui informado que não tinha ninguém com aquele nome na casa. Só quando citei o seu nome de guerra foi que chamaram por ele”, disse a Soldado Feminino PM Adna, psicóloga do CASJ há 15 anos e especialista em neuropsicologia.
Outra boa iniciativa da Corporação foi a instituição do “Dia do Veterano”, onde policiais aposentados se reúnem para rever amigos, saber novidades e assuntos de seu interesse, assistir palestras com temas ligados a saúde mental e qualidade de vida, shows, além de participar de sorteios de brindes. “O objetivo é trabalhar a auto-estima desses policiais”, afirma o Capitão Cássio Roberto Ferraz, Chefe do Serviço Social do CASJ, responsável pelo evento. Os encontros acontecem anualmente na Capital e no Interior, na primeira quinzena de novembro.
Dentro dessa mesma filosofia, de agregar os ex-companheiros, os policiais da Rota criaram o grêmio “Boinas Negras”. Em média, três vezes ao ano se reúnem em uma chácara para jogar futebol, participam de um churrasco e matam saudades. É a forma que acharam para manter viva a lembrança heróica vivida na Corporação.
“Passei os últimos dois anos cuidando da minha chacrinha”, disse o 2º Tenente PM Antonio Luis Aparecido Marangoni, de 47 anos, veterano da Rota, que está aposentado desde 2006.
Também deixou crescer o cabelo e a barba. “Isso acaba sendo uma necessidade”, avalia ao comentar a obrigatoriedade que os militares têm de freqüentar periodicamente o barbeiro.
Segundo ele, a inatividade deu-lhe a sensação de liberdade, passou a ter tempo pra tudo. “Sempre que precisa, levo minha filha à faculdade. Agora estou totalmente a disposição da minha família”.
Casado há 25 anos, tem uma filha solteira com 19 anos, um filho casado com 23 anos e uma netinha com dois meses.
Marangoni sempre foi presente e se orgulha de nunca ter dormido fora de casa. Afirma que está muito feliz nessa nova fase, contudo, se perceber que a vida está ficando monótona, admite que poderá arrumar alguma ocupação profissional.
A atividade policial é diferenciada. Como nenhuma outra. Quando ingressamos, somos condicionados para ter que cumprir o juramento do sacrifício da própria vida a qualquer momento. Mas, aposentados, mais do que nunca, precisamos aprender uma nova lição.
*Texto de minha autoria, publicado originalmente no site da PMESP, "Legião On Line"