quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O tempo


Tinha cinco anos quando caí da escada ao pular degraus. Quebrei o braço. As brincadeiras em casa sempre eram seguidas de travessuras e punições. Lembro-me da minha vó, velhinha, protegendo meu irmão Misael, o preferido. Por pirraça, fingia brigar com ele pra vê-la brava. Na mesma época, ao ir à escola com o Misa, parávamos perto do matadouro municipal para ver os bois. Nem sequer imaginava que seriam abatidos.

A paixão pelo futebol iniciou algum tempo depois, quase na mesma época em que me apaixonei por uma coleguinha da classe. Perto dela, transpiravam minhas mãos, eu parecia um chafariz humano.

Adolescente, dei o primeiro mergulho no mar, em Angra dos Reis. Ali conhecia uma nova paixão. Mal sabia que daquele sentimento seria cativo. Também vivia cercado de irmãos e amigos.

Ir à São Paulo foi a solução encontrada para tentar uma colocação e garantir o futuro. Eram tempos difíceis. Sonhador, burlava a ansiedade com pensamentos onde tudo dava certo ao final.

O ingresso na Polícia Militar confirmou que o futuro já havia chegado em trinta suaves prestações anuais. Quando dei por mim já estava aposentado.

Resistente, tratei de me impor alguns outros desafios, mas percebi que o tempo é implacável. Com ele, a sensação de que minha capacidade de realizar aumenta enquanto proporcionalmente ele diminui.

Lembrei-me de quando li a biografia de Martinho Lutero. Fiquei impressionado com o seu drama de querer ser monge enquanto seu pai pressionava para que estudasse direito. Todos aqueles problemas já estavam há mais de 500 anos para trás.

Outro dia reencontrei alguns antigos companheiros do quartel no sepultamento de um amigo em comum. Local propício para reflexões, não pude furtar-me às minhas.

Com a ampulheta virada desde o nascer e com a certeza de que me resta menos que a metade do tempo já vivido, reflito: se cada ano que ficou registrado não há a menor possibilidade de mudança, qual imagem vou deixar na memória dos meus descendentes e conhecidos?

Uma canção de Nana Caymmi diz que “o tempo zomba do quanto eu chorei porque sabe passar e eu não sei, mas no fundo é uma eterna criança que não soube amadurecer”.

A verdade é que precisamos parar de maltratar essa criança com a composição de histórias medíocres; afinal, assim como estranhamos nossos filhos tomarem forma e fazerem escolhas sem o controle de nossas rédeas, não é justo entregá-la à vala comum dos desafortunados. Não podemos deixar à posteridade apenas a tristeza de nossas mortes morais, espirituais e físicas.

* Texto publicado originariamente na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A décima oitava hora



Não sei qual a motivação da corte texana quando definiu a décima oitava hora do dia para a execução dos condenados do corredor da morte. Em minhas conjecturas e tentativas de encontrar o simbolismo desse detalhe ritualístico, a que melhor encaixou na minha absorção foi a ideia de que a décima oitava hora marca a chegada da noite, da escuridão, ou seja, o cumprimento da pena atingiria o campo espiritual, separaria definitivamente o indivíduo dos seus semelhantes, a quem teria causado um grande mal. A intenção seria patentear a exclusão não somente terrena mas também do paraíso?

Essas reflexões chegaram a mim ao assistir ao programa Bastidores, da National Geographic Channel, nesta segunda-feira (15), num documentário sobre o Corredor da Morte no Texas, EUA.

Visualmente a pena de morte pareceu ser uma solução. Ao mostrar em detalhes os crimes cometidos por três condenados, o programa se desenrolou com depoimentos diversos, inclusive dos próprios condenados, e finalizou com os três mortos serenamente sobre uma maca. A cena sugeriu implicitamente que a solução atendeu à necessidade dos apenados e da sociedade.

“Eles deveriam ser executados com a mesma crueldade do delito que cometeram”, esbravejou uma jovem moradora da pequena Huntsville, cidade texana onde fica o presídio que mais executa a pena capital. Não está errado, se avaliarmos que o objetivo da pena é fazer justiça. Entretanto, a pena capital alimenta mais o desejo de vingança do que propriamente de expiação e, assim, pela mão do Estado os indivíduos, inconscientemente, voltam a um estágio primitivo no qual todos acabam condenados, pois o ódio não somente atinge quem recebe as ações do seu desencadeamento; também assim o faz com aquele que o alimenta.

A intenção da justiça texana seria causar o menor sofrimento possível, conforme ficou constatado em outra execução. Em 2010, um condenado, em suas últimas palavras, narrou a aproximação da morte ao receber a injeção letal: “Eu achei que ia ser bem mais difícil que isso. Estou preparado para ir. Eu vou dormir agora. Eu posso sentir. Está fazendo efeito…”.

Meu questionamento é: devemos flertar tanto com a morte quando nós mesmos não a desejamos?

O tema divide as opiniões e tanto os defensores da medida quanto os refratários a ela são pródigos em argumentos; porém, ao invés de desejarmos a pena de morte como mecanismo de frenagem para atividade criminosa, deveríamos ser capazes de escolher a primeira hora para iniciar as boas ações que vão construir um mundo melhor.


* Texto revisado, originariamente publicado na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Preconceito: Não dá para não criticar!

Ilustração: Latuff Cartoons

Falar sobre preconceito é fácil quando se restringe apenas a sua ideologia. Mas me atrevo porque, ao fazer uma análise de consciência e revisitar a própria memória, concluí o quanto fui plural nas minhas relações. Falo de envolvimento, sentimentos de amizade ou de amor. Algo concreto, prático, intenso.

Já tive amigo intelectual e ignorante, estuprador, estelionatário, assaltante, assassino, psicopata, drogado, homossexual, negro, branco, estrangeiro, nortista e nordestino, sulista, sudestino e centroestino, político, padre, pastor, rabino e pai de santo; mantive casos com prostituta, bissexual, depressiva, moradora de mansão e favela, empresária, faxineira, nova, velha, bonita, feia, gorda, magra, branca, negra, brasileiras e estrangeiras; bebi em taça de cristal e copo de requeijão, vesti linho, flanela, frequentei bons restaurantes e comi quentinha na periferia; viajei em aeronaves e de carona, na boleia de um caminhão; conheci Paris e o sertão; a riqueza, a miséria, pessoas bem-sucedidas, fracassadas; quem ria e quem chorava. Cantei rock, forró, samba, reggae e gospel. Torci pelo campeão e pelo rebaixado. Chorei com histórias de superação, filmes de amor e também sorri com humor inocente.

Em todas essas experiências sensoriais mantive a base da minha formação familiar, religiosa e social, permitindo, contudo, que os meus conceitos fossem aprimorados.

Descobri que atrás desses rótulos existiam pessoas, seres que, em algum momento, nossa semelhança humana nos aproximou, embora eu não tivesse a afinidade com suas crenças, práticas, atitudes e comportamentos. Isso me fez uma pessoa melhor. Não que eu tenha alcançado a perfeição, apenas me tornei muito melhor do que poderia ser caso não tivesse absorvido os ensinamentos dessas relações.

Nesta semana recebi a mensagem de um jornalista, em resposta a uma sugestão de pauta para o meu livro “Papa Mike – A realidade do policial militar”, onde ficou claro que recusava a sugestão simplesmente pelo preconceito aos policiais.

Preconceito à parte, o mínimo que eu esperava desse vagabundo é que ele lesse o livro. O adjetivo não se refere ao disfemismo de concluir que seja um marginal, mas ao fato de que ele nem sequer teve a dignidade de ler a obra antes da contraindicação aos seus leitores, simplesmente por tratar-se de uma temática e de um autor policial. Tenho certeza de que se teria surpreendido, como tem acontecido com muitos outros colegas dele.

O mundo está repleto de pessoas assim, as quais dão ao preconceito suas mais perversas roupagens, todas elas repugnantes, todas capazes de subtrair dos seus semelhantes as diversas oportunidades.

Aqui vai meu gesto de repúdio à atitude de alguém que tanto invoca a liberdade de expressão. Faço-o com a responsabilidade que a mim atribuí: denunciar toda a espécie de apartheid social e contra ela lutar.

Ao nobre jornalista só tenho a dizer que a forma preconceituosa com que me tratou não vai atingir os propósitos de quem discrimina, qual seja, conviver com as diferenças e com as vozes dissonantes. Nessa questão, pior para ele que não leu o livro. Certamente passaria a ter muitos outros argumentos para falar mal da polícia, caso um dia decidisse largar as fileiras dos covardes.

* Texto publicado originariamente na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Veterano sim, ocioso não.


Foto: Marco Aurélio Olímpio

Em 2011, ao chegar a Recife, surpreendeu-me positivamente tomar conhecimento da existência da Guarda Patrimonial, criada em 1994 e composta, em sua totalidade, por cerca de três mil policiais e bombeiros militares inativos – do comandante à sentinela. A unidade fazia guarda do quartel, segurança de autoridades e presídios, entre outras atividades.

Inicialmente, a remuneração correspondia a 55% do salário bruto de cada militar na aposentadoria. Atualmente, o salário está sucateado, e as praças, de uma forma geral, recebem em torno de 850,00 reais. O reflexo dessa desvalorização levou a redução do efetivo a 2.500 componentes, por desinteresse dos militares.

As atividades da Guarda Patrimonial são diversificadas e contemplam serviços que a experiência de cada profissional, cultivada ao longo dos 30 anos de lida, possibilita suprir a demanda de uma cidade cosmopolita com excelência. Mas o benefício não se restringe à atuação dos veteranos, pois a liberação dos policiais que se encontram no fulgor da juventude para o calor do front, onde o crime exige pronta resposta, em decorrência dessa iniciativa, afigura-se uma gestão pública bastante eficaz.

Nesta semana, numa inédita oportunidade, policiais veteranos de São Paulo e outros estados foram convocados para 30 dias de serviços nas olimpíadas, no Rio de Janeiro, para trabalhar seis horas por dia, no monitoramento das esteiras e do raios-X, que controlam o acesso nas praças desportivas . Receberão pelo mês de trabalho 16 mil reais.

O exemplo do Pernambuco e desta oportunidade nos Jogos Olímpicos deveria ser seguido pelas demais corporações. Essa mão de obra qualificada que fica ociosa após a aposentadoria deveria ser “veteranizada” (Criei o adjetivo em referência aos veteranos porque acredito que ficaria melhor que “recrutada”, que, embora se refira a recrutamento, lembra o “recruta” que, definitivamente, estes não são). De preferência com a mesma valorização que terão nos próximos 30 dias.

Ganhariam todos. O veterano, pela ocupação e pelo reforço na renda. A corporação, pela qualidade do serviço e liberação dos novatos para a atividade-fim, e o estado, pela economia dos altos gastos gerados na formação dos novos profissionais.

*Texto publicado originariamente na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

Força ou Impotência Nacional?



Certa vez, enquanto aguardava a abertura do semáforo, atento, olhando para todos os lados, em razão de estar fardado, observei que um velhinho, magro, cabelos brancos, vinha em minha direção. Ele estendia a mão de carro em carro pedindo ajuda financeira. Nem costumo dar dinheiro na rua, pois o nosso cotidiano está impregnado de gente de caráter duvidoso, que se passa por necessitado, porém aquele senhor trazia uma sinceridade na expressão que desafiava minha resistência de cidadão cioso. Tinha um ar do aposentado cuja renda não lhe permitia comprar o próprio remédio.

Ao selecionar umas moedinhas no console, pronto para um ato humanitário quase inédito, percebi que aquele homem recolheu-se ao identificar-me a farda, e, todo ressabiado e de forma respeitosa, proferiu: “- Desculpa. O senhor também ganha pouco.” Diante do meu olhar atônito, abandonou meu silêncio e foi procurar alguém que lhe pudesse oferecer condições mais venturosas, segundo seu julgamento. Parece piada. Antes fosse.

Os motivos que levaram aquele senhor a ter essa opinião se repetem todos os dias, e dá-se em função da nossa cultura de divulgar assuntos intramuros com pessoas que não têm o poder de mudar a nossa condição. E essa postura nos transforma numa espécie de pedinte, merecedor da compaixão de alguns, mas também maldição de outros.

Com a Força Nacional foi diferente. Às vésperas de uma olimpíada, colocou a boca no trombone e conseguiu um aumento de quase 150% na diária. De 224 reais pulou para 550 reais.

O problema foi a forma como alcançaram o intento. Além das más condições dos apartamentos em que foram alojados, alardearam também que estavam sofrendo pressão das milícias. Um absurdo!

Que vivemos num país onde “tá tudo dominado” não é novidade. Vivemos à beira do caos em todas as áreas. Agora… Uma tropa de elite assumir impotência frente à ameaça de uma milícia faz-me acreditar que essa diária já estava sendo excessivamente bem paga.

* texto publicado originariamente na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

A opinião é do público?


Foto: Marco Aurélio Olímpio


Alvo de preocupações de órgãos públicos, empresas privadas, artistas, políticos etc, a opinião pública, quando anunciada na mídia, parece ser a própria “voz de Deus”.

Mas como sabemos a opinião sofre influência familiar, religiosa, social, econômica e, entre outras tantas, da própria mídia, tornando-se uma das principais.

Há três anos, 64% dos brasileiros eram favoráveis aos Jogos Olímpicos. Agora, a aprovação retrocedeu para 40%, de acordo com a pesquisa feita pelo Instituto Datafolha entre os dias 14 e 15 de julho.

Essa mudança na opinião do público deve-se exatamente pela divulgação diária da corrupção e da violência, logo a chamada “opinião pública” muitas vezes é particular, pessoal, de um formador de opinião.

Tais divulgações remetem as pessoas a muitos medos, inclusive o da possibilidade do país importar os atos terroristas noticiados recentemente do Estado Islâmico; como se já não tivéssemos nossas modalidades de crime tão aterrorizantes quanto, além da corrupção terrorista e da degradação moral em que vivemos.

Por falar em opinião, tenho pra mim que a realização da olimpíada no Brasil, embora com seus muitos problemas, será uma grande influência para crianças e jovens praticarem esportes. E isto, por si só, trará saúde, esperança e, o melhor, incentivo para o afastamento das drogas e do crime.

*Texto publicado originariamente na coluna do Sargento Lago no Portal Stive

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Por que você quer trabalhar na Polícia Militar?



Uma das prováveis perguntas que o psicólogo fará ao candidato que está ingressando na polícia será: Por que você quer trabalhar na PM? A resposta poderá definir a aprovação ou não.

Em 1981 eu estava no Hospital da Polícia Militar do estado de São Paulo, no processo de seleção para ingresso na corporação, quando um policial veterano - olhando para todos os candidatos enfileirados, aguardando para fazer o exame de sangue - comentou com seu colega: “Estão todos felizes agora, depois verão o que lhes esperam”. Sua fala, em tom de alerta, sequer me abalou. Minha determinação era infinitamente superior ao seu presságio.

Na prática ao longo dos anos concluí que ele não estava de todo errado. De fato a profissão é espinhosa, motivo pelo qual muitos companheiros procuram desviar seus filhos do desejo de seguir a profissão. Da mesma forma que muitos pais se orgulham ao ver seus filhos vestindo o mesmo uniforme que ele. O que difere, como em tudo na vida, são as oportunidades e experiências que cada um terá dentro da carreira.

O que o candidato precisa avaliar é se está disposto a enfrentar todos os desafios que a profissão oferece. Quanto vai lhe custar para atingir o objetivo que traçou para sua carreira profissional. Se é exatamente isso que quer. Do contrário poderá perder tempo numa profissão da qual só conhecia os estereótipos e tinha fantasia juvenil.


Parece simples tudo isso, mas não é. Já estava aposentado quando fui viajar por todo o país, para tentar entender o que motiva um policial militar exercer a sua profissão e coloquei minhas impressões no livro Papa Mike – a realidade do policial militar, lançado em junho de 2016. 

A obra relata a verdade nua e crua da profissão, sem fantasias. Quem tiver convicção da sua vocação certamente ficará com o coração fervendo para ingressar logo, mas se tiver dúvidas irá repensar a decisão.