domingo, 22 de dezembro de 2019

A nobreza da luta

Sargento Lago 1985 / 2019



De uma família numerosa e poucos recursos, morando na Zona Leste, periferia de São Paulo, onde a xepa da feira era um recurso a ser considerado, em tempos agudos de crise, o anseio pelo conhecimento tornou-se minha única esperança, naquele diminuto universo de oportunidades.

Essas recordações vieram a mente enquanto observava uma foto minha atual, daquelas que a gente escolhe o cenário apropriado para agregar à pose, se ajeita no melhor ângulo e clica várias vezes, pra escolher e postar nas redes sociais.

Nela não vi apenas o veterano Sargento Lago, com tantas histórias e algumas conquistas. Meus pensamentos retrocederam e enxerguei na foto a luta que teve aquele jovem policial inseguro e com carências, mas cheio de desejos de conquistas e esperançoso por alcançá-las.

Trabalhando desde cedo, numa época em que os filhos entregavam aos seus pais os envelopes fechados com os pagamentos, ao final do mês, não existia a mínima possibilidade de comprar aquela calça "boca de sino” e o sapato "plataforma", muito menos o "carrapeta", sonho de consumo dos jovens.

A única calça jeans, desbotada pelo uso e não por causa da moda - e ainda bem que era moda - já rasgada - e aí sim, nem era moda ainda - saía do corpo apenas na hora de dormir ou enquanto estava lavando. E muitas vezes o processo de secagem era abreviado com o ferro de passar roupa, em razão da necessidade de sair.

Ano após ano o desejo de ser "alguém na vida” foi motivo de resignação nos sábados melancólicos em que o consolo eram os bate-papos com os amigos com o mesmo grau de dificuldade financeira.

Ter que sufocar o desejo de uma conquista amorosa por não ter sequer uma roupa decente para o encontro era muito frustrante. Toda garota que tivesse a pele e o cabelo mais cuidados era considerada rica, logo inacessível. E, assim, foram muitas as desilusões, em amores platônicos.

Ingressei na Polícia Militar atendendo a exigência escolar mínima. Para conquistá-la, tive que bater em várias portas escolares, sem sucesso, e, por fim, conseguir por meio do “supletivo”, recurso que permitia sintetizar os três anos do ensino médio com a metade do tempo e da conquista intelectual. Mas fazia parte da regra, então utilizei-me dela.

No serviço a condição de policial me permitia conhecer muitas pessoas. Nelas buscava meu aprendizado de vida. Conversar, conversar, conversar. Dedicava-me a isto. Do velho a criança. Do mendigo ao milionário. A profissão oferecia essas oportunidades.

Nas madrugadas frias, enquanto preservava um cadáver, numa quebrada qualquer - sem ao menos um bar por perto para tomar café - quando o assunto com o parceiro esgotava, acendia um cigarro, quando ainda me permitia esse mau hábito, e - observando o pobre moribundo que tivera seus sonhos e planos encerrados com a morte - imaginava o rumo que poderia dar ao próprio destino.

Era um misto de ansiedade e força para vencer. Por isso tratei de conseguir a aprovação nos concursos para cabo e sargento. Ainda nos primeiros anos na polícia, já sentia a diferença na mudança de status, ao galgar essas promoções.

O desejo incansável na busca pelo conhecimento tornou-me humilde o suficiente para admitir ignorância e interromper conversas para solicitar explicações dos termos e conceitos que desconhecia. Assim adquiri, dentro de todas limitações que tinha, a evolução gradativa ao ponto de sequer perceber em qual momento meu linguajar foi mudando e que deixava de ser apenas um ouvinte para já conseguir estabelecer um diálogo com pessoas cujo nível intelectual era alvo da minha admiração.

Concluir o curso de jornalismo contribuiu na autoestima. Sentia orgulho ao responder qual curso frequentara. Ficava com a sensação que minha opinião ganhava credibilidade, assim adquiri convicção para emiti-las.

Todas experiências agregaram. O curso de paraquedismo trouxe o controle sobre o medo de altura e a perspectiva de dimensão, a partir da altitude, que tornava um estádio de futebol do tamanho de uma bola de gude. Ajudando concluir que a observação distanciada dos problemas pode deixá-los menor.

Utilizei-me do talento para trabalhar a composição musical e isto me mostrou ser possível viver com a realidade cruel da sociedade desigual, sem enrudecer.

E viajar, certamente, das experiências, foi a mais agregadora.

Percorrer cada estado deste imenso Brasil - trocando em miúdos as emblemáticas questões - vistas, até então, apenas pelas telas das tevês, com opiniões conceituais de quem as transmitia - proferidas com o sotaque e o vocabulário dos nativos, com liberdade para interagir com a informação, trouxe a real compreensão dos problemas longínquos que refletem nos grandes centros.

A fotografia que observava exibia a melhor imagem de um homem envelhecido, enquanto as lembranças perpetuavam o jovem vigoroso com suas fragilidades. Em comum ambas traziam o desejo pela evolução como ser humano. Do anseio por construir pontes entre o sonho e as conquistas.

Projeto em todo jovem policial que encontro nas ruas a busca pelos mesmos anseios que tive.

Em tempos de maiores oportunidades e informações, porém também do crescimento do descaso e do desrespeito ao humano, onde banalizam-se sentimentos e sonhos e que valores indisponíveis são negociados em moedas baratas, avalio que o grau de dificuldade que o recruta Sargento Lago enfrentou para galgar cada degrau no seu caminho equivale-se ao do jovem policial atual. Por isso há-se de recrudescer os ânimos e lutar com fibra e garra. Ambicionar a vitória é legítimo. Lutar por ela é nobre.



Ps: A nobreza da luta - Como o recruta tornou-se veterano (Não teve revisão)

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