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Sargento Lago 1985 / 2019 |
De
uma família numerosa e poucos recursos, morando na Zona Leste,
periferia de São Paulo, onde a xepa da feira era um recurso a ser
considerado, em tempos agudos de crise, o anseio pelo conhecimento
tornou-se minha única esperança, naquele diminuto universo de
oportunidades.
Essas
recordações vieram a mente enquanto observava uma foto minha atual,
daquelas que a gente escolhe o cenário apropriado para agregar à
pose, se ajeita no melhor ângulo e clica várias vezes, pra escolher
e postar nas redes sociais.
Nela
não vi apenas o veterano Sargento Lago, com tantas histórias e
algumas conquistas. Meus pensamentos retrocederam e enxerguei na foto
a luta que teve aquele jovem policial inseguro e com carências, mas
cheio de desejos de conquistas e esperançoso por alcançá-las.
Trabalhando
desde cedo, numa época em que os filhos entregavam aos seus pais os
envelopes fechados com os pagamentos, ao final do mês, não existia
a mínima possibilidade de comprar aquela calça "boca de sino”
e o sapato "plataforma", muito menos o "carrapeta",
sonho
de consumo dos jovens.
A
única calça jeans, desbotada pelo uso e não por causa da moda - e
ainda bem que era moda - já rasgada - e aí sim, nem era moda ainda
- saía do corpo apenas na hora de dormir ou enquanto estava lavando.
E muitas vezes o processo de secagem era abreviado com o ferro de
passar roupa, em razão da necessidade de sair.
Ano
após ano o desejo de ser "alguém na vida” foi motivo de
resignação nos sábados melancólicos em que o consolo eram os
bate-papos com os amigos com o mesmo grau de dificuldade financeira.
Ter
que sufocar o desejo de uma conquista amorosa por não ter sequer uma
roupa decente para o encontro era muito frustrante. Toda garota que
tivesse a pele e o cabelo mais cuidados era considerada rica, logo
inacessível. E, assim, foram muitas as desilusões, em amores
platônicos.
Ingressei na Polícia Militar atendendo a exigência escolar mínima. Para conquistá-la, tive que bater em várias portas escolares, sem sucesso, e, por fim, conseguir por meio do “supletivo”, recurso que permitia sintetizar os três anos do ensino médio com a metade do tempo e da conquista intelectual. Mas fazia parte da regra, então utilizei-me dela.
No serviço a condição de policial me permitia conhecer muitas pessoas. Nelas buscava meu aprendizado de vida. Conversar, conversar, conversar. Dedicava-me a isto. Do velho a criança. Do mendigo ao milionário. A profissão oferecia essas oportunidades.
Nas madrugadas frias, enquanto preservava um cadáver, numa quebrada qualquer - sem ao menos um bar por perto para tomar café - quando o assunto com o parceiro esgotava, acendia um cigarro, quando ainda me permitia esse mau hábito, e - observando o pobre moribundo que tivera seus sonhos e planos encerrados com a morte - imaginava o rumo que poderia dar ao próprio destino.
Era um misto de ansiedade e força para vencer. Por isso tratei de conseguir a aprovação nos concursos para cabo e sargento. Ainda nos primeiros anos na polícia, já sentia a diferença na mudança de status, ao galgar essas promoções.
O desejo incansável na busca pelo conhecimento tornou-me humilde o suficiente para admitir ignorância e interromper conversas para solicitar explicações dos termos e conceitos que desconhecia. Assim adquiri, dentro de todas limitações que tinha, a evolução gradativa ao ponto de sequer perceber em qual momento meu linguajar foi mudando e que deixava de ser apenas um ouvinte para já conseguir estabelecer um diálogo com pessoas cujo nível intelectual era alvo da minha admiração.
Concluir o curso de jornalismo contribuiu na autoestima. Sentia orgulho ao responder qual curso frequentara. Ficava com a sensação que minha opinião ganhava credibilidade, assim adquiri convicção para emiti-las.
Todas experiências agregaram. O curso de paraquedismo trouxe o controle sobre o medo de altura e a perspectiva de dimensão, a partir da altitude, que tornava um estádio de futebol do tamanho de uma bola de gude. Ajudando concluir que a observação distanciada dos problemas pode deixá-los menor.
Utilizei-me do talento para trabalhar a composição musical e isto me mostrou ser possível viver com a realidade cruel da sociedade desigual, sem enrudecer.
E viajar, certamente, das experiências, foi a mais agregadora.
Percorrer cada estado deste imenso Brasil - trocando em miúdos as emblemáticas questões - vistas, até então, apenas pelas telas das tevês, com opiniões conceituais de quem as transmitia - proferidas com o sotaque e o vocabulário dos nativos, com liberdade para interagir com a informação, trouxe a real compreensão dos problemas longínquos que refletem nos grandes centros.
A fotografia que observava exibia a melhor imagem de um homem envelhecido, enquanto as lembranças perpetuavam o jovem vigoroso com suas fragilidades. Em comum ambas traziam o desejo pela evolução como ser humano. Do anseio por construir pontes entre o sonho e as conquistas.
Projeto em todo jovem policial que encontro nas ruas a busca pelos mesmos anseios que tive.
Em tempos de maiores oportunidades e informações, porém também do crescimento do descaso e do desrespeito ao humano, onde banalizam-se sentimentos e sonhos e que valores indisponíveis são negociados em moedas baratas, avalio que o grau de dificuldade que o recruta Sargento Lago enfrentou para galgar cada degrau no seu caminho equivale-se ao do jovem policial atual. Por isso há-se de recrudescer os ânimos e lutar com fibra e garra. Ambicionar a vitória é legítimo. Lutar por ela é nobre.
Ps:
A nobreza da luta - Como o recruta tornou-se veterano (Não teve revisão)