quarta-feira, 26 de maio de 2010

Dizendo o que não foi dito


Enxugando gelo

Sargento Lago (*)


As mudanças no comando de algumas unidades da PM paulista causaram enorme repercussão nos meios de comunicação. Entre elas, a que mereceu maior atenção foi a substituição do corregedor, empossado sob um clima messiânico, como solução para todos os problemas de conduta da Instituição. Na permuta, a autoridade substituída, a despeito de uma extensa folha de serviços prestados, em inúmeras atividades ao longo da carreira, saiu como incompetente, frouxa e desinteressada, submetida às humilhações que só quem sofreu um processo de fritura é capaz de reproduzir.


Lamentável que uma troca rotineira na Polícia Militar - visto que, quando ocorrem promoções são feitos ajustes, e os oficiais mais antigos são alocados em unidades de maior prestígio – sirva para proteger politicamente o candidato do PSDB dos efeitos de suas mazelas no gerenciamento da Segurança Pública em nosso Estado. Em verdade o teatro protagonizado pelo Secretário da Pasta esconde a real intenção do inflexível mandatário: jogar para debaixo do tapete uma equivocada gestão, marcada por arrogância e autopromoção, responsável pela explosão dos índices de violência em nossas pradarias. Mais entristecedor é que nenhum órgão de imprensa procura desmascarar esse tipo de postura; ao contrário, houve até cobertura midiática para visitas teatrais em Delegacias de Polícia.


Agora, pergunta-se: por que não melhorou o atendimento nas delegacias? Por que a solução para a diminuição das reclamações foi o fechamento das DP no período noturno e nos finais de semana?


A verdade precisa prosperar, e a população precisa despertar sua capacidade de indignar-se com essa política do faz de conta. Será que o povo paulista sabe que ele está mais desprotegido porque o Secretário transformou a Polícia Militar em pajem de presos? Será que sabe da diminuição da fiscalização aos policiais no turno de serviço em decorrência do desvio de sargentos para acompanhar escoltas?


É inaceitável macular-se a imagem de profissionais dedicados e de órgãos compromissados para eximir-se de culpa. A Corregedoria vai produzir os mesmos bons resultados de sempre, porque é um esteio da instituição e da população, à medida que se mantém inarredável do seu mister de fiscalizar o comportamento dos policiais militares, desprovida de corporativismo, de favorecimentos. Não haverá mudança no contexto que a pirotecnia estatal quis imprimir, principalmente porque o que provocará a transformação pretendida passa de largo das intenções dos politiqueiros: um elaborado programa de valorização profissional, que modifique uma cultura viciada.


Fala-se muito das condutas negativas de alguns policiais; e não me refiro a quem pratica crime de desvio de caráter, pois esses, acredito, nem a rigorosa seleção de ingresso consegue evitar, mas aos que sob estresse e, às vezes, por aparente motivo fútil brigam no trânsito, matam, usam drogas, atrasam para o trabalho, relacionam-se mal com os colegas. Que programa de recuperação há para eles? Depois vai exigir-se respeito à dignidade humana de quem sequer tem dignidade para proteger a cidadania. A polícia é grande e grandiosa e não pode negligenciar essa chaga que corrói suas entranhas.


Meu cunhado trabalha na Nestlé há 25 anos, desde que completou 16 anos. De tanto que exalta os feitos da empresa em relação ao tratamento dado aos seus empregados, toda vez que me deparo com a marca no supermercado e/ou nos comerciais de televisão, sinto uma satisfação inexplicável diante de seus produtos. Mas isso não foi conquistado do dia pra noite e, certamente, houve investimento na satisfação do principal cliente: os funcionários.


Domingo li no jornal Folha de S. Paulo que o Governo do Estado apresentou um programa que vai cuidar da saúde dos professores e minimizar os males gerados pela desfavorável condição de trabalho, ou seja, percebeu-se que se perde menos se fizer a prevenção. Tomara que não seja apenas promessa de ano eleitoral, pois os profissionais da educação, saúde e segurança formam a categoria mais carente de atenção e a mais esquecida.


As mudanças na Polícia Militar, nos últimos 30 anos, deram-se em razão das mesmas ocorridas na sociedade, mas não houve um enfoque na reparação dos problemas já apresentados no passado. As ações quase sempre foram para sanar emergências, preterindo a prevenção.


O investimento na qualidade do profissional inicia-se na seleção do candidato a ingresso na instituição, na formação, no treinamento, na fiscalização e na constante valorização humana, que cuida da saúde física e mental com salários, prêmios, medalhas etc. A organização empenha-se a realizar todas essas valências, numa seriedade não encontrada em qualquer instituição pública. Contudo, o resultado não é o esperado porque a valorização humana ainda está aquém do que se espera de uma entidade que se propõe a proteger vidas.


Há 15 ou 20 anos eu trabalhava num batalhão da Zona Oeste quando vieram umas psicólogas entrevistar os policiais de serviço. Uma das perguntas que me fizeram foi: "Se a PM fosse um animal, qual seria?" Respondi: Um elefante com cabeça de formiga.


Naquela época eu já considerava a nossa força superior às ações realizadas. Hoje eu não daria a mesma resposta, mas ainda percebo que nessa área de valorização humana estamos longe de alcançar o patamar desejado. Os efeitos são perversos. Vão desde a descompromisso com os ideais da Instituição até o medo de agir. Não será descompasso se me atrever a dizer que a desvalorização humana é o que permite homens valiosos aceitarem humilhações por conta de uma disciplina que bem aplicada representa sustentação, entretanto pode significar a mais dolorosa das omissões, aquela que entrega nossas cabeças nos patíbulos oportunistas para expiar os pecados dos vendilhões de nossa honra e moral.


Visitei a maioria das polícias militares do Brasil e, triste, constatei que algumas delas, com condição inferior a nossa, estão avançados nesse quesito, na mesma proporção inversa da sua capacidade em relação ao nosso Estado.


Ainda vou bater nessa tecla, pois é uma tese que defendi ao longo da minha carreira, mas que só terei o prazer de ver as mudanças no dia em que pararem de ficar enxugando gelo.


(*) Policial militar da reserva, cantor, compositor e jornalista diplomado.


www.sargentolago.blogspot.com

6 comentários:

  1. BRAVO ! ! ! sua perspicácia é o fator principal para seu sucesso, apoio quase que integralmente com sua posição, só não concordo quando você diz que o governo tenta valorizar o PM com salários e etc, pois durante o tempo em que me dediquei a Policia Militar só no Governo de
    Franco Montouro houve um salário digno, infelizmente, pois hoje somos os mais crucificados.
    Abraços.
    Carlos Antonio

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  2. Carlos Antonio,

    Meu bom companheiro!

    Eu disse que a organização empenha-se, mas o resultado não é o esperado. Nisso incluo o salário. Aliás, é principalmente no salário que somos desvalorizados.

    Grande abraço

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  3. Caramba Lago!!!

    Você escreve bem demais! Também... "jornalista diplomado"...

    Você conseguiu fazer um assunto desses descer "redondo" e com muito estilo. Amei a figura do "elefante com cabeça de formiga" genial em relação às funções desempenhadas pela polícia. (Embora eu me sinta uma formiga com cabeça de elefante diante das atribuições do cargo).

    Você tem que mandar esse texto pra um jornal, uma coluna, para a associação. Precisa divulgar mais esse blog. Faz contato aí com seus colegas jornalistas, põe esse seu empresário pra trabalhar.
    rs rs rs

    Beijos!!!

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  4. Novinha,

    Devido ao envolvimento com outros afazeres, nem sepre dá pra fazer um texto desses, mais elaborado. De qualquer forma, é bom saber que agradou.

    Valeu pela força!

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  5. Graaande Sargento Lago, tenho acompanhado seu trabalho, e o admirado.
    Lendo seu belo artigo, e após breve reflexão, entendo porque dizem que nossa Polícia virou cabide de emprego. Triste realidade!!!
    Mais uma vez, PARABÉNSSS pelo trabalho.
    Grande abraço

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  6. Muito obrigado, Areias.

    Grande abraço.

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