sexta-feira, 8 de maio de 2020

Lenda, este é o seu nome


Lenda, este é o seu nome -  PODCAST AQUI


Subtenente Bosco, uma lenda no sertão



As experiências vividas na atividade policial na cidade de São Paulo, que exige muito sacrifício e pouca recompensa, foi a motivação para dar início ao Projeto Polícias Militares do Brasil, em 2010, percorrendo o país e conhecendo os verdadeiros heróis dessa nação, publicados no livro papa Mike – a realidade do policial militar.

Ao programar a realização da terceira edição do projeto, decidi que percorreria, desta vez, as cidades do interior. Se nas capitais - próximo ao poder - encontramos injustiças e descasos, deduzi que o afastamento desse centro ampliaria o esquecimento.

Sem saber exatamente o que me esperava, cheguei a cidade de Juazeiro, no sertão baiano, no início do mês de fevereiro de 2020 e me apresentei ao comandante da Companhia Independente de Policiamento Especializado Caatinga. Tratei de falar-lhe sobre o projeto de valorização do policial que desenvolvia e este gentilmente franqueou a unidade para visitação e interação com o efetivo.

Respeitada em todo estado por ser unidade de elite, cada policial que eu conversava ficava com a sensação de que estava no lugar certo. Os grandes heróis estavam resignados em seu papel e já conformados com a máxima que “o que acontece no sertão, fica no sertão”, dando conta de que nenhum valor é agregado individualmente ao trabalho exercido.

Em meio a uma conversa aqui e outra ali, com muitas histórias de heróis onde todas mereciam registros, pela dificuldade de contar todas, comecei averiguar se havia alguma que se destacava das demais, e daí todos com humildade e admiração, foram unânimes em dizer: converse com o subtenente Bosco, é uma lenda aqui no sertão.

Designado no setor de inteligente, já havia visto ele circulando pelo quartel em trajes civis e com documentos na mão, levando para o comandante assinar. Sequer imaginei a grandeza de heroísmo daquele homem.

Após dar encaminhamento aos documentos com prazos rígidos, recebeu-me em sua sala de trabalho e calmamente começou seu relato.

O ano era 2003. Com pouco tempo na PM, mas com conhecimentos adquiridos recentemente num curso de operações rurais, o destino lhe pôs à prova. Foi acionado para atuar numa ocorrência que marcaria pra sempre a sua vida. Não apenas pela gravidade, pois descobriria posteriormente que sua vocação é atuar em situações de extremo perigo onde a sobrevivência sequer é questionada, mas por ser uma das primeiras e ainda não ter a confirmação do seu chamado para ser uma lenda.

A cidade de Pilão Arcado no interior da Bahia estava vivendo uma cena de cinema, com personagens reais, numa trama de mocinhos e bandidos onde esses eram impiedosos e queriam, a todo custo, sair daquela cidade com o produto do roubo ao banco do Brasil que acabaram de saquear.

Era por volta do meio-dia daquela quinta-feira, vinte e cinco de setembro, quando Bosco e sua equipe ouviram gritos alarmantes pelo rádio da viatura pedindo socorro e anunciando o assalto ao banco do Brasil de Pilão Arcado/BA. Eles já haviam sido informados pelo serviço de inteligência desta possibilidade, por isso aguardavam num local por nome Passagem, distante doze quilômetros de Pilão Arcado.

Minutos depois já estavam dentro da cidade. O pânico era total. Outras forças policiais também havia chegado para ação.

Se posicionaram defronte a única agência bancária existente e foram recebidos com rajadas disparadas pelos bandidos, mas ainda não tinham visualizado os agressores. Então valeram-se do conhecimento prévio do terreno e formaram uma célula tática, que permitiu a progressão, dando a volta no quarteirão, onde tiveram a visão frontal da agência. Conseguiram visualizar os marginais, mas como reza a doutrina de combate: “Se você está vendo o oponente, pode ser que você também esteja sendo visto”. A máxima valeu. Foram recebidos a tiros e tiveram que recuar mais rápido que a progressão.

Mudaram a estratégia e se posicionaram numa outra praça, que ficava na diagonal ao banco, onde já estavam dois policiais federais. Ali Bosco deparou com uma imagem impactante que jamais esquecerá: dois policiais federais estavam deitados no meio da rua, gravemente feridos, imóveis e sobre uma poça de sangue.

Como estavam abrigados tiveram pela primeira vez, naquele teatro, condições de combate. Enquanto revidavam os muitos tiros dos oponentes, buscavam uma solução para socorrer os policiais feridos, que estavam na linha de tiro entre eles e os marginais. Neste momento surgiu um helicóptero da Polícia Federal sobrevoando bem próximo a agência, mas permaneceu por pouco tempo e se afastou. Logo, pelo rádio transmissor do policial federal que estava ao seu lado, Bosco ouviu que um policial tripulante havia sido ferido por disparo de fuzil no rosto e veio a óbito.

Em meio a tensão do confronto e a notícia da morte deste policial, decidiram em conjunto que resgatariam os policiais feridos e que estavam no meio do fogo cruzado.

Montada a estratégia de apoio de fogo por parte dos demais policiais, numa ação rápida e muito arriscada, Bosco e outro policial federal saltaram sobre a caçamba de uma S10 em movimento - dirigida por outro agente federal - e desceram no local do resgate. Os companheiros estavam imóveis e podia-se ver várias perfurações em seus corpos. Rapidamente foram colocados no carro. Um deles tinha a perna esfacelada, que dobrou-se na hora do socorro.

Na pressa de abandonar o local, em razão da intensificação do tiroteio, Bosco ficou para trás e buscou cobertura atrás de uma viatura da Polícia Federal, toda cravada de tiros de fuzis. Depois, rastejando, retornou ao abrigo em que estava anteriormente.

Com intensidade alternada, o tiroteio já durava mais de uma hora quando os marginais, protegidos por reféns, decidiram abandonar o banco com os malotes e fugir. Neste momento os disparos ficaram mais intensos, vindos de um bar ao lado, onde outros dois marginais davam proteção de fogo para a fuga. As cenas foram registradas por uma equipe de televisão e percorreu o mundo.

Dentro de uma F-4000, os bandidos fugiram sem ser importunados, pois acreditava-se que seriam parados na barreira polical na saída da cidade, mas posteriormente constatou-se que havia sido desmobilizada para prestar socorro ao policial ferido no helicóptero.

Os fugitivos deixaram para trás dois dos mais importantes integrantes da quadrilha que, mesmos fragmentados, mantiveram o confronto por mais alguns minutos, em intenso tiroteio. Ao cessar o fogo, Bosco, um parceiro da sua equipe e um policial federal se aproximaram do bar e constataram logo na entrada um marginal, vestido com roupa preta e colete balístico, imóvel, com um tiro na cabeça. Ao seu lado havia um fuzil FAL calibre 7.62x52 e uma PT calibre .380 que ainda estava em sua mão. Havia outro marginal atrás do balcão que tentou a reação com um fuzil AK-47 e foi morto.

Com ele também foi encontrado uma granada defensiva, sete carregadores de AK-47 completamente cheios e duas sacolas contendo farta munição dos calibres 7.62X39 (AK-47), 7.62X52 e 5.56mm.

Ao cessar os tiros chegaram outros policiais e constaram que os mortos eram “Valtinho Araquã” e o “Cleiton Araquã”, ambos bandidos saguinários que praticavam assaltos cinematográficos às agências bancárias em todo o país.

Avaliavam ainda o desfecho daquela ação, quando foram informados da fuga dos outros marginais.

Por intuição, Bosco e a sua equipe foram para uma estrada de terra na área rural e lá perceberam um rastro de óleo deixado. Deduziram ser do Ford/ F400 utilizado pelos meliantes, notoriamente atingido por disparos da polícia.

Seguiram os indícios e alguns quilômetros depois encontraram o veículo abandonado no meio de uma estrada, com dois malotes de caixa eletrônico e muito sangue na cabine.

Verificando os rastros deixados, constataram que os marginais pularam uma cerca de arame farpado e seguiram a pé em direção à densa caatinga, território onde Bosco e sua equipe dominam, então seguiram em frente, enquanto os policiais federais retornavam.

Ao anoitecer, registraram com GPS o ponto em que pararam para continuarmos a perseguição no dia seguinte.

Na madrugada da sexta-feira, foram informados que um grupo de homens havia passado nas imediações de uma fazenda, ainda no município de Pilão Arcado. Ao amanhecer, um grande contingente policial, composto por policiais da CPAC, policiais militares da área e policiais federais, deslocaram para averiguar a veracidade da informação. Lá chegando um morador relatou que durante a madrugada a lua estava clara e os cães latiram muito e que, olhando pela brecha da janela, avistou seis homens portando armas longas e carregando sacolas. Com essas informações, começaram seguir os rastros, mas logo o efetivo policial desistiu, por não ter mais nenhum vestígio. A equipe do Bosco, entretanto, com autorização do oficial responsável, permaneceu no local e seguiu em diligência.

Por volta de 08h30min, procuravam às margens da rodovia no sentido de Remanso/BA, e quando estavam há cerca de dez quilômentros de Pilão Arcado, nas imediações do “Morro do Sarango”, reencontraram os rastros por cima das Macambiras, vegetação da caatinga, indicando que haviam seguido em direção ao Rio São Francisco.

Imediatamente Bosco solicitou apoio de efetivo, que chegou em poucos instantes. Vieram também dois helicópteros da Polícia Federal.

Utilizando-se da doutrina de patrulha adquirida no recém-concluído curso de operações rurais, Iniciaram a mais perigosa caçada já vivida por aquela recém-criada CPAC em meio à caatinga, onde a experiência, conhecimento técnico e bravura foram fundamentais.

Os “Xiquexiques” ou “Coroas de Frade”, cortados e mastigados, encontrados durante a incursão demonstraram que os marginais também tinham habilidade na caatinga, pois utilizavam da flora para minimizar os efeitos do clima, já que estavam num dos períodos mais quentes e secos do ano. “Em setembro a Caatinga ferve”, lembrou Bosco.

Encontraram também pochete com kit cirúrgico contendo, inclusive, morfina. Noutro ponto acharam telefones celulares e munições do calibre 5.56mm e rádios de comunicação, sinalizando que estavam próximos.

Quando os marginais chegaramn uma das depressões do terreno, sentindo a presença da patrulha, tentaram uma emboscada, mas foram rechaçados fortemente e recuaram.

Na fuga deixaram para trás um marginal gravemente ferido, segurando um fuzil Bushmaster e portando ainda um revólver calibre 357 e uma PT .40, esta última da PM do Estado do Amapá. O indivíduo estava deitado sobre todo o dinheiro roubado do Banco, divididos em três malotes, sendo somada na DEPOL a quantia de mais trezentos mil reais.

Cinco dias depois, a alguns metros do local do último confronto, um vaqueiro encontrou outro morto, portando um fuzil AK-47 e mais a quantia aproximada de cinco mil reais.

Naquele mesmo dia a operação chegaria ao fim após a morte de três marginais que trocaram tiros com a equipe do sargento Bosco, com apoio de dois policiais da inteligência da PM pernambucana e um policial federal, na cidade de Sento-Sé/BA.

Ao final daquela opoeração foram contabilizados sete marginais mortos, o falecimento de um policial federal e um pedreiro que havia sido pego como refém, dois policiais federais gravemente feridos, que felizmente sobreviveram e dois marginais presos, além de grande quantia em dinheiro recuperada.

Esta ocorrência foi um divisor de águas na CPAC, tornando-a reconhecida nacionalmente como unidade de elite da PM baiana e temida pelos bandidos, provocando um enorme sentimento de autoestima em seus integrantes.

Este episódio foi o primeiro de uma série de outras ocorrências com alto grau de risco em que a habilidade e o destemor do subtenente Bosco foi evidenciada na solução dos casos. Foram intensos tiroteios com uma das organizações criminosas mais ousadas e violentas do país, que ficou conhecida como o “novo cangaço”, e que o elevaram a condição de ser referência de atuação.

Tantos atos heroicos, no entanto, ainda que venerado pelos seus comandantes e pares, não sensibilizaram as autoridades militares ao longo dos anos. O policial - que recebeu condecorações de outros estados - sequer mereceu uma medalha da Bahia e a possibilidade de uma promoção por ato de bravura arrasta-se por longos dezessete anos, sem chegar a uma conclusão.

O orgulho de pertencimento, no entanto, é mais forte e o motiva ser o profissional que é. Ao longo da carreira, teve que acostumar-se, infelizmente, não apenas com as agruras da seca e a violência do sertão como também da árida falta de incentivo profissional.

Permaneceu na graduação de Primeiro Sargento de 2001 a 2015, quando foi promovido a subtenente. No entanto, mesmo em todo este período sem ascensão hierárquica e reconhecimento meritório profissional, não se esquivou de dispor a própria vida em várias situações para defender a segurança do sofrido povo sertanejo. Por isso continua sendo um espelho para a tropa de caatingueiros. Como é dito “Enquanto há vida há esperança”. Eis aqui uma oportunidade para que a nossa querida PM baiana, de tantas glórias e conquistas, reconheça este símbolo policial militar que tanto orgulho traz aos que conhecem a sua história. Aos que quiserem conhecê-lo, basta chegar ao sertão baiano e perguntar por ele. Lenda é o seu nome.

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