Izidoro era negro, esguio, cerca de 1.87 e tão dócil, que era carinhosamente chamado por todos de Zizi.
Trabalhamos juntos nos anos oitenta, na Primeira Companhia do Décimo Sexto Batalhão, em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo.
Eu, recém-chegado; ele, veterano. Meus olhares curiosos e inseguros sempre encontravam nele uma resposta apaziguadora e serena para as minhas incertezas. Quando meu tio, sargento Lago, não estava por perto, era Zizi quem me orientava.
Estivemos algumas vezes na mesma viatura. Após cada ação profissional, explicava-me os procedimentos didaticamente. No meu enfado de recruta, quase sempre com pressa de ter as rédeas das minhas vontades, eu ainda não compreendia tanto zelo daquele negro bonachão. Sem eu perceber, aquele valoroso homem estava entrando em minha vida para sempre e deixando lições das quais jamais me esqueceria.
Na minha formatura de cabo, surpreendeu-me. Entre as pessoas que me parabenizavam, lá estava ele, elegantemente fardado, e, junto com o fraternal abraço, proferiu palavras apenas ditas por quem tem orgulho da profissão.
Ao apresentar-lhe uma prima, acompanhada do esposo, elegantemente se curvou e beijou-lhe a mão, numa reverência aristocrática. Causavam espanto e enlevo tanta nobreza num ser aparentemente rude e a grandeza que se extraía de gestos singelos espontaneamente dedicados.
E assim meu mentor tirava diariamente da cartola lições da vida e preparava-me para uma iniciação em vários campos da arte de viver: política, religião, arte… Ao me afastar do limbo da rotina, possibilitava reflexões, conferia-me autonomia para avaliar cada passo de minha vida, ao que hoje sou muito grato.
Certa vez, cheguei ao Serviço de Dia com a papeleta de uma ocorrência de latrocínio, à qual eu havia acabado de atender, e, ao narrar a ele os fatos, orientou-me: “Acenda uma vela para o seu anjo da guarda, porque ele te livrou da morte hoje”. Sua advertência me trouxe à memória o quanto nós policiais temos a necessidade da gratidão divina, diariamente, coisa que o empoderamento, do qual nos revestimos quando desafiamos o perigo, nos faz infelizmente esquecer.
Sua condição boêmia, no entanto, emprestava-lhe um status na caserna que não combinava com a sua elegância imperial. “Quem gosta de música é gente de bem, tenente”, respondeu certa vez com olhar triste, ao ser inquirido por mais um atraso ao serviço. Chega dar saudades desse tempo em que a maioria dos policiais em desalinho tinha apenas a bebida e o cigarro como vício.
As biritas nos botecos da Vila Madalena e as madrugadas na Escola de Samba Tom Maior, sua paixão, vez e outra lhe deixava em maus lençóis com o oficial. Todavia, em que pese um ou outro atraso, sempre fora muito profissional.
Recordo com nostalgia as muitas lições do Cabo Zizi, que aposentou pouco tempo depois que me transferi da unidade e fui trabalhar na Rota.
Nas muitas confraternizações de final de ano, estive em dezembro com os veteranos daquela época. Uma das faltas que mais senti foi a de Zizi, que morreu pouco tempo depois de passar para a inatividade policial. Tristeza maior é perceber que homens daquela estirpe estão cada vez mais raros na sociedade. Sem referências, todos padecem.
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