Este livro surgiu na
esteira do projeto Polícias Militares do Brasil, que desenvolvi com o objetivo
de conhecer e registrar, em imagens e depoimentos, a realidade nos quartéis da
PM no país. Corria o ano de 2010 e, recém-aposentado, após trinta anos de
serviço na PM do estado de São Paulo,
via-me ainda atormentado por várias questões para as quais, ao longo da
carreira, não conseguira encontrar resposta.
Quando, no auge dos
meus 20 anos, fiz a opção de ser policial, sabia que essa escolha significaria
dedicar os trinta anos seguintes da minha vida a combater o crime. Durante todo
esse tempo, nunca duvidei de que havia tomado a decisão certa. A carreira
policial me credenciou a agir na direção de algo que desde sempre me
incomodara, e certamente teria me frustrado não poder fazer isso.
Não tenho a pretensão
de mapear as causas do crime, mas é notório que nossos governantes contribuem
para que ele se prolifere. Os investimentos são mal geridos e aplicados em
questões menos fundamentais. A preocupação maior está em mostrar resultados que
tragam benefícios eleitorais. Bilhões vão para o ralo em projetos com esses
objetivos funestos, enquanto grande parte da população sobrevive em condições
miseráveis, morrendo em hospitais mal equipados, lutando por um mínimo que
comer, carente de toda oportunidade de uma vida melhor, abandonada, enfim, ao
descaso do Estado.
Não há nenhuma novidade
no que acabo de dizer. Há pilhas de análises aprofundadas sobre o tema e os
jornais não se cansam de explorá-lo. Mas não vem de nenhuma dessas fontes a
minha percepção do problema, senão da vivência direta como policial, no contato
cotidiano com pessoas para as quais a polícia é a mais marcante experiência – a
única, na verdade – da presença do Estado nas suas vidas.
Mas, claro, as razões
para a criminalidade vão além das questões sociais. O crime está presente na
civilização desde os seus primórdios. O primeiro registrado na Bíblia foi o
homicídio praticado por Caim contra seu irmão Abel (ou terá sido o estelionato
da serpente contra Eva?), e desde então muitos outros foram cometidos não por
criminosos contumazes, mas por pessoas
que reagem impulsivamente a sentimentos negativos, sejam eles deflagrados por
uma simples bebedeira, uma briga de casal, desestruturação familiar ou puro
despeito.
A mensagem bíblica
traz, nos Dez Mandamentos, os ensinamentos que deveriam nortear o comportamento
humano. Se fossem cumpridos, viveríamos uma sociedade justa, de paz e harmonia.
Contudo, o que prevalece são esses vícios da natureza humana – a inveja e
a cobiça, a raiva e o orgulho, entre os outros ditos pecados capitais – que
desconhecem as fronteiras entre ricos e pobres e levam à corrupção ética e
moral, impedindo-nos de ver o próximo como um semelhante.
É nesse cenário
complexo que atua o policial, ele mesmo, muitas vezes, vindo de lares expostos
à desigualdade social e travando em si, como qualquer ser humano, as batalhas
contra suas próprias fraquezas. Com uma diferença, porém. Dele se espera a
capacidade de vencer todas as dificuldades e sacrificar a própria vida, se for
preciso, na missão de proteger o próximo.
Somos treinados para
essa missão. Aprendemos sobre os perigos que vamos enfrentar nas ruas, a
manejar armas, a resistir em situações extremas, a aceitar a possibilidade da morte
em cada esquina. Ao longo da carreira, no entanto, observei que a maior dificuldade
com que um policial tem que lidar é a invisibilidade.
Não aquela
invisibilidade de super-herói, o dom de passar despercebido diante do inimigo
quando se quer ou precisa, mas essa outra que nos torna ignorados por todo o
sistema a que devemos servir – o Estado, a própria corporação e a população, de
maneira geral. Difícil por si só, essa condição ainda piora quando a única
visibilidade que ganhamos é a dos erros que cometemos.
As cadeias estão
lotadas. Se não há mais inquilinos lá, é apenas por falta de espaço no sistema
carcerário, por lentidão da justiça e por ineficiência da lei, que permite
válvulas de escape a doutos advogados que, na aplicação do princípio do direito
à defesa, encontram astutas saídas para o indefensável. Não se põe em xeque
essa situação com a mesma disposição que se aplica às críticas sistemáticas aos
policiais, que são apenas um dos elos na corrente da segurança pública. E o
mais frágil, talvez, apesar da imagem de força e poder transmitida pela farda.
É tão negativa a
opinião formada pela sociedade com respeito ao policial que até mesmo tomar um
café ou lanche no lugar de sua escolha pode expô-lo à censura. Logo surge
alguém para dizer que ele está fazendo uso do uniforme para não pagar a conta –
especialmente quando o proprietário resolve brindá-lo com a gratuidade para que
continue frequentando o estabelecimento e inibindo, assim, possíveis assaltos.
Ninguém se incomodaria se um famoso qualquer recebesse a mesma regalia em forma
de permuta. No final, a única fama que cabe a um policial é a que o desmerece.
Essas questões todas latejavam
em mim quando me aposentei. Não foram as vicissitudes do ofício que me deixaram
com o gosto amargo da frustração, mas a falta do reconhecimento. Quando decidi
viajar pelo Brasil visitando as corporações do país, não pensava ainda em
escrever este livro. Queria apenas revisitar a minha própria experiência,
confrontando-a com a realidade do universo policial em outros contextos, na
esperança de encontrar alívio para minhas inquietações e conseguir, assim, me
desligar da profissão sem perder o sentido do seu valor e do meu próprio. Com a
coleta de imagens e testemunhos, pretendia, de início, fazer um documentário,
mas foram tantas as impressões pessoais que escrevê-las tornou-se uma
necessidade irresistível.
Nestas páginas, o
leitor encontrará recortes do que acontece no cotidiano dos policiais. Se for
um civil, terá a ocasião de ver, por outros olhos que não os seus, quem são
esses servidores que atuam pela sua segurança; perceberá que certas coisas que
ouviu dizer não passam de lendas, enquanto outras são a mais pura verdade. Se
for um policial, conhecerá perspectivas distintas e peculiaridades próprias de
cada lugar; em todo caso, se reconhecerá também aqui e ali e, certamente, nada
lhe será indiferente. Espero que festeje a oportunidade dos temas discutidos,
cujo objetivo, longe de ser o de jogar farofa no ventilador, é apontar
problemas que podem ser reparados, a fim de tornar nossa profissão mais digna,
humana e, sobretudo, reconhecida.