quarta-feira, 19 de março de 2008

O dia que encontrei Walcyr Carrasco, sem saber.

Era manhã de domingo, acho que umas sete e meia. Tinha acabado de chegar do meu plantão noturno. Aliás, uma rotina sem rotina nos últimos vinte e dois anos. Enquanto minha mulher começa a preparar um café, ainda com a cara amassada de uma noite mal dormida – é sempre assim, quando estou trabalhando não consegue dormir – sentado no sofá, começo assistir o filme das últimas 15 horas da minha vida...

...Passava das dezesseis e trinta. Ainda estava no ponto de ônibus. Morador de periferia vira e mexe tem esses contratempos. Esse atraso acabou custando uma bronca no quartel. O tenente estava azedo. Esbocei dar uma justificativa quando, manuseando sua pistola ponto 40, disse para me apressar em colocar a farda e evitar mais atrasos.

Pouco tempo depois, já estava na rua. O rádio da viatura estava impossível. O COPOM tinha mais ocorrências a serem transmitidas que patrulhas para atendê-las. Uma desinteligência aqui, um auxílio ao público ali, tudo sendo feito dentro daquele turbilhão de acontecimentos.

Às 4h30, estava com muita fome. Como finalmente tinha sido “esquecido” pelo COPOM, decidi parar numa padaria e lanchar. Para minha infelicidade, na hora que fui dar a primeira mordida no pão com salsicha que o Tiririca caprichosamente preparou, acrescentando um pouco mais de molho com pimentão, pelo rádio portátil - conhecido como HT - recebi ordens para ir rapidamente para um cortiço próximo dali. Um nordestino embriagado esfaqueou sua companheira por não lhe servir o jantar. Com muito pesar abandonei o lanche sobre o balcão e, apressadamente, me dirigi ao local. De longe, ainda ouvi o Tiririca gritar: “se você voltar, eu faço outro”, alertando-me de que outro felizardo degustaria aquele banquete.

Quando cheguei ao local da ocorrência, socorri a mulher ferida. Avisei para o colega que veio em apoio para verificar os fundos do cortiço. O agressor poderia estar lá.

No hospital, enquanto a senhora era atendida, aproveitei para tomar um antiácido. Pegava a papeleta de identificação de socorro prestado, quando apareceu o tenente. Com o mesmo mau-humor, antes de qualquer coisa, disse que meus sapatos estavam sujos. Tentei argumentar que foi devido ao excesso de atendimentos durante a noite. Saindo, e já de costas pra mim, disse: “Daqui a pouco quero que se apresente a mim com eles limpos”.

Aborrecido, cansado e com fome, fiquei imaginando onde poderia encontrar uma escova naquela hora para limpá-los. De repente, passando em frente à uma banca de jornal, vi um garoto com uma caixa de sapateiro. Sem pestanejar, dirigi-me à ele. Naquele momento, sequer passou pela minha cabeça que não era hora de um menino estar na rua. Ele representava para mim uma dor de cabeça a menos. Estendi-lhe o pé, impondo-lhe minha autoridade – aliás, são raros os momentos que tenho essa sensação – e, de imediato apareceu um senhor, desses que se intrometem em assunto alheio, vindo em defesa do garoto.

Ah... Que noite! Foi interrompido meu pensamento. Surge minha mulher, adivinhem com quê? Um pão com salsichas com muito molho e pimentões. Faminto, comia como um louco quando, de soslaio, percebi que sobre a mesa tinha uma revista. Ameacei folhá-la, mas, sem ânimo, virei apenas a contra capa que me revelou um texto do Walcir contando, sob sua ótica, uma história com o título “Pequenos abusos”.

Crônica enviada a redação da revista Veja São Paulo que encaminhou ao Walcyr Carrasco.

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